Galpão Aplauso e Gratidão. Por Paulo Faveret – Economista do BNDES

Depoimento de Paulo Faveret, Economista do BNDES.
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“É preciso ver o mundo com os olhos de quem já morreu para que tudo se torne mais sagrado e belo”

(Luigi Pirandello em “Colóquio com a Mãe”)

PRIMÓRDIOS

Conheci o Galpão Aplauso em 2006. Estava trabalhando no Banco Interamericano de Desenvolvimento, em Washington – DC, e havia organizado uma visita de conselheiros da diretoria-executiva ao Brasil. Uma semana. No Rio de Janeiro, por sugestão da equipe do escritório de Brasília,
visitamos três projetos sociais. Pela manhã, distritos especialmente pobres de São Gonçalo. No início da tarde, área na Avenida Brasil que havia sofrido intervenção do Favela-Bairro. Por fim, Galpão Aplauso, apoiado pelo BID no bojo do Favela-Bairro.

Centenas de jovens envolvidos em múltiplas atividades. Educação pela arte, começando pela socialização, a partir da descoberta de si e do outro. A partir dessa base relacional, elementos essenciais de conhecimento formal. Em seguida, formação profissional. Para nossa caravana, foi um sopro de esperança depois de um mergulho na pobreza e na violência.

Uma das cenas mais marcantes desse dia inesquecível por sua mistura radical de horror e beleza foi encontrar a jovem conselheira norte-americana aos prantos diante de um quadro. Este retratava o drama existencial do jovem pintor e sua estrada da vida bifurcada em duas direções: um caminho que levava à violência e destruição e outro, à paz e realização. Ao adquirir consciência sobre sua vida e suas origens, o jovem lutava para tornar-se senhor de suas escolhas com apoio
do projeto e dos colegas.

Ao voltar para Washington organizei um agradecimento coletivo dos conselheiros, por meio de um cartão. Naquele momento decidi apoiar voluntariamente o projeto. Entrei em contato com Ivonette Albuquerque, criadora e diretora-executiva do Galpão.

BID/FUMIN

Retornei ao Brasil em março de 2007. Procurei Ivonette para ajudar naquilo que poderia – captação de recursos por meio de preparação de projetos e contatos. Tendo em vista as dificuldades com o apoio da prefeitura, em fase de retirada, buscamos alternativas. O Fundo Multilateral de Investimentos do BID (Fumin) pareceu promissor. Um de seus focos era apoiar com doações dos países ricos projetos que propiciassem a geração de emprego e renda na América Latina e Caribe. Convidamos pessoas do escritório de Brasília. Por essas coincidências da vida, um dos responsáveis por esse tipo de projeto havia sido meu aluno e tornara-se muito bom amigo. Ao visitar o Galpão, encantou-se, como quase todos. Houve diversas interações para orientar a equipe do Galpão sobre procedimentos de captação.

No início do segundo semestre, soubemos que Luis Alberto Moreno, presidente do BID, viria de férias ao Brasil. A turma do Fumin em Brasília deu um jeito de sugerir a visita ao projeto. Ele topou e levou os filhos. Corremos e preparamos uma minuta de carta-consulta com os termos básicos. Ao final da visita, Moreno, emocionado, disse para enviar o pleito. Ivonette tirou do bolso e entregou. Na
mesma hora, Moreno repassou para a turma de Brasília, com orientação para analisar e enviar para DC. Assim começou o primeiro financiamento do Fumin ao Galpão, como uma “conspiração do bem”.

Por orientação do financiador, o projeto abriu o leque de aprendizados profissionais na direção da indústria. Visava preparar trabalhadores para os setores industriais em recuperação, como petroquímico e naval. Além disso, foi introduzida maior atenção à dimensão de monitoramento e avaliação.

Nesse meio tempo, levei várias pessoas para conhecer o projeto. O saudoso André Urani foi um deles. Disse ter sido o melhor projeto social que conheceu. Muito mais tarde, Cora Rónai escreveu: “o mais importante é que, ao longo desse processo, todos se tornam seres humanos melhores, capazes de ganhar seu sustento e de transmitir o que aprenderam. Deixam de ser cidadãos passivos e passam a pensar, porque aprendem a interpretar o mundo em que vivem”.

BNDES

Fui para a ARH no final de 2008. Em 2009, recebemos centenas de novos colegas. Havia muita preocupação com a difusão dos valores do Banco e com o entendimento do contexto de desenvolvimento por parte dos novos no curso de ambientação. Como havia levado a equipe do DEDES para visitar o Galpão, em função de sua relação direta com aprendizado, alguém sugeriu incluir o Galpão no curso. Assim centenas de colegas novos passaram por lá, conhecendo uma iniciativa com imenso impacto positivo na vida de jovens em condição fragilizada. Fazíamos sempre as conexões entre a alegria em meio à escassez daqueles jovens e a responsabilidade dos benedenses em promover a melhoria da condição de vida dos menos favorecidos. Adicionalmente,
estimulávamos a reflexão sobre a condição de cada novo benedense em relação a seu próprio e ultraprivilegiado ambiente de trabalho.

Dessas interações houve várias derivadas. Uma foi o apoio ao Galpão pelo patrocínio do Banco. Preciso recuperar o caminho, mas também esteve ligado ao encantamento de algum benedense que sugeriu o patrocínio ao GP. Não tive envolvimento nesse movimento, a não ser a satisfação de ver crescer o leque de apoiadores.

Foi justamente uma voluntária que propiciou a segunda derivada. Amiga de Adelaide, secretária da presidência do BNDES, Regina teceu loas ao Galpão, sugerindo que o presidente deveria conhecer. Adelaide abriu espaço na agenda sem avisá-lo, recomendou sua visita e o presidente Luciano passou duas horas numa tarde lá. Emocionou-se como eu nunca vi em todos os anos de seu mandato e desde então tem apoiado sempre que pode, de diferentes maneiras.

O caminho natural seria a Área Social. À época, o regulamento do Fundo Social não permitia apoio a projetos “não-sustentáveis”, pois o foco era em atividades geradoras de renda. Não obstante, a articulação da equipe do DESOL com fundações sociais privadas permitiu que estas viessem a financiar o projeto. O apoio veio em boa hora, pois o Galpão estava financeiramente estrangulado, em
vias de fechamento. Sobre outras derivadas falarei em outra ocasião.

GESTORES QUE APRENDEM

Em 2012, iniciei participação no IMPM, programa internacional de desenvolvimento de gestores. Em 2013 convidei o coordenador do módulo Brasil e professor da FGV-EBAPE, Alexandre Faria, para conhecer o Galpão. Gostou do que viu e desde então tem trabalhado com Ivonette em várias frentes. Uma, no aconselhamento referente a temas de gestão do projeto. Em outra, mais intensa, levou o Galpão para a grade do módulo “Ação” do IMPM. Participantes do curso visitam o projeto para analisá-lo sob a ótica da gestão e dos conceitos apresentados no curso, de quebra oferecendo algum tipo de “consultoria amigável” sobre ajustes e rumos a seguir. Integrantes do projeto apresentam técnicas de aprendizado baseadas na criação de empatia pelo outro, o que estimula a reflexão dos executivos sobre a mentalidade “wordly”, pela qual as diferenças são reconhecidas, aceitas e mesmo incentivadas.

À primeira vista, pode parecer estranho levar uma turma internacional de executivos muito experientes em um projeto social para discutir gestão. Mas os resultados têm sido animadores. A gestão está em todo o lugar, mesmo onde os recursos não são abundantes. A troca de experiências tem sido muito rica. Os participantes relatam aprender muito com a experiência de Ivonette, pela capacidade de mobilizar recursos escassos na direção de impactos positivos na vida dos alunos, professores e, por que não dizer, dos doadores.

EFETIVIDADE

O projeto com o Fumin aproximou o Galpão do mundo da avaliação da efetividade. Nunca é simples atender a todos os critérios, parâmetros e procedimentos, mas o resultado foi positivo. A equipe do Fumin inscreveu o projeto num prêmio de efetividade promovido pelo Tesouro dos EUA. Em 2014, Galpão e BID ganharam o “Development Impact Honors” em reconhecimento ao seu método de educação inovadora, graças à avaliação, com base científica, dos impactos positivos sobre a vida dos participantes.

Em virtude das boas avaliações, o projeto se credenciou para um segundo financiamento, encerrado ano passado. A renovação do apoio é evento raro, pois recursos de doação internacional são escassos e por isso os projetos são selecionados com cuidado. Foi dada maior ênfase ao fortalecimento institucional, bem como na sistematização da experiência, com vistas a disseminá-la.

Houve também experiência na cidade de Paraty, com apoio de uma rede de empresários, incluindo a família Roberto Marinho. O objetivo era utilizar a metodologia de educação pela arte como apoio em escolas de segundo grau. Novamente os resultados foram positivos, com aumento das notas dos alunos.

Há alguns anos o projeto busca se inserir no sistema de formação de mão-de- obra para empresas de vários segmentos. Trata-se de uma jornada de médio prazo, pois é necessário encontrar espaço comercial junto às empresas, o que requer modelos de negócio e de avaliação bem azeitados. O conceito de “bônus de impacto social” está sendo estudado como uma das alternativas de captação de recursos. Tudo isso se relaciona à instabilidade permanente das fontes de financiamento desse tipo de iniciativa.

DESENVOLVIMENTO

A vivência do Galpão é rica em conexões entre gestão e desenvolvimento. Para muitos benedenses, eu certamente, tem funcionado como uma recuperação do espírito de desenvolvimento como mudança das condições de vida dos mais pobres. As decisões de Ivonette e sua equipe, no contexto das interações com os financiadores, governo, alunos, famílias, evidenciam a direta relação entre gestão e efetividade. Nesse sentido, funcionam como fonte de inspiração e reflexão para o trabalho em uma instituição de financiamento.

Visitar o projeto e com ele trabalhar é também uma forma de crescimento pessoal e profissional. No programa de desenvolvimento “Liderança para o Desenvolvimento”, conhecido como Mini IMPM, realizamos atividade de dia inteiro lá com as cinco turmas. O encontro se insere no módulo sobre “diversidade”, que no IMPM é chamado de mentalidade “wordly”, termo de difícil tradução. Iniciamos o dia com manhã de conversa sobre encontros com “outros” e à tarde há uma inspiradora visita ao projeto que termina com um encontro com os jovens. Profissionais sofisticados como os benedenses encontram pontos em comum e aprendem com jovens da periferia em local diferente do usual. O resultado é tocante e revigorante – recuperamos o sentido da existência humana e o objetivo final de um banco de desenvolvimento.

GRATIDÃO

Ao longo desses quase 14 anos de colaboração voluntária com o Galpão, recebi muito mais do que dei. Ainda que Ivonette sempre me agradeça muito, o que certamente me lisonjeia, sinto que meu trabalho é mínimo comparado com o da equipe de profissionais do Galpão e, sobretudo, o dos alunos. Eu apenas me valho de parte dos muitos conhecimentos obtidos ao longo de 28 anos de BNDES (com a curta interrupção de dois anos e meio no BID, graças aos quais tive a alegria de conhecer o Galpão). Ainda é muito pouco para tantos privilégios que a vida me ofereceu.

Todas as vezes que visito o Galpão, saio com a esperança renovada. Os sorrisos dos jovens durante seus estudos e apresentações são a maior evidência da efetividade do projeto. O método socioafetivo tem se provado capaz de ajudar jovens criados em ambientes hostis, violentos, quase sempre em famílias desestruturadas e vítimas de vários tipos de abusos sistemáticos. Precisavam encontrar alguém que lhes permitisse mergulhar em si mesmos e ali dentro descobrir força suficiente para uma mudança de rumos.

O efeito é tão forte que se espalha como ondas de choque pelos que interagem com eles. Empresários que contratam os jovens formados no projeto são unânimes em afirmar que eles têm comportamentos inspiradores que contagiam os demais, mesmo gestores e empregados de nível universitário. Sua vivência encarnada de valores e virtudes espalha bons exemplos e inspira todos os que com eles convivem. Não surpreende a quem assiste as apresentações artísticas no Galpão.

Como disse Pirandello, Ivonette, os professores e, sobretudo, os jovens do Galpão me ensinam a ver o que realmente importa há mais de 13 anos. Por tudo isso sou imensamente grato!

Fonte

http://www.afbndes.org.br/vinc1401/opiniao.htm